Ana Miranda
27/12/2015
Quem é o brasileiro?
No tempo de Gregório de Matos, século 17, o brasileiro ainda não existia, pois quem nascia no Brasil era português. Mas havia uma distinção entre o português nascido no Reino, o reinol, e o nascido na colônia, já chamado de brasileiro. E o nosso primeiro poeta, apelidado de Boca do Inferno porque sua sátira não poupava nem a si mesmo, dizia:
Que os Brasileiros são bestas,
e estarão a trabalhar
toda a vida por manter
maganos de Portugal.
Foi assim que começou a imagem do brasileiro, um sujeito besta que trabalhava para enriquecer os colonizadores. Besta em todos os sentidos: animal de carga, pessoa de pouca inteligência, simplória, pretensiosa, pedante, e sem importância. Era a “canalha infernal”. Mas trabalhava.
Com a nossa independência de Portugal, o brasileiro passou a existir, e sob a imagem romântica de Peri, um índio nobre, honrado, belo, heroico, valente, perseverante, apaixonado pela loira Ceci. Um belo nascimento como cidadão. Mas era o Romantismo, que não demorou a ser associado a quimeras e devaneios.
Daí, no século seguinte passamos a ser o Jeca Tatu, personagem caipira criado por Monteiro Lobato, quando o Brasil era ainda um país agrícola. Jeca Tatu veio para combater a imagem do “índio de fraque” oitocentista. O Jeca Tatu, um caboclo pobre, magro, amarelado, preguiçoso, tinha o ar desleixado, barba rala e sem fazer, os pés sempre descalços. Morava numa casinha de taipa, coberta de sapé, perto de um riacho, e não passava sem uma boa cachaça. Pescava ou plantava só o que ia comer. Não sabia ler nem tinha hábitos de higiene. Francamente atrasado diante das potências mundiais, foi criado como um símbolo do brasileiro que vivia no campo – e quase todo brasileiro vivia no campo. Quando o personagem foi usado na campanha de Rui Barbosa para a presidência da República, o povo em massa se viu no Jeca Tatu.
O personagem passou por algumas metamorfoses, quando se converteu em Jeca Tatuzinho, vítima de uma sociedade e de um Governo desinteressados nos pobres e famintos; depois em Zé Brasil, um brasileiro explorado num país submetido à espoliação internacional – os novos maganos. Ao seu lado, apareceu o Jeca Tutu (tutu, para quem não sabe, é dinheiro), que era o brasileiro da elite, mas que não passava de um matuto metido a besta – voltamos a Gregório de Matos.
Quando o Brasil se tornou um país industrializado e urbano, com a maioria do povo morando nas cidades e suas periferias, o personagem que nos representava era o Zé Carioca, um simpático papagaio criado por Walt Disney durante sua hospedagem no Copacabana Palace. Malandro, divertido, festeiro, vagabundo e preguiçoso, que apresentava ao pato ianque - o Donald - a cachaça e o samba, Zé Carioca era elegante: paletó, gravata, chapéu panamá e charuto, além de um guarda-chuva no braço. Craque no futebol, o divertido papagaio pouco a pouco encarnava com perfeição o “jeitinho brasileiro”. Mas ainda tinha traços de ingenuidade e meiguice caipiras.
Com o Modernismo, o mais brasileiro dos brasileiros apareceu em forma de Macunaíma, da obra prima de Mário de Andrade. Manhoso, encrenqueiro, mentiroso, indolente, mundano, sempre às voltas com a fome, o índio tapanhuma nasceu preto retinto, e tempos depois, após um banho encantado, virou um homem louro de olhos azuis. Louco por dinheiro e por mulheres, o “herói sem nenhum caráter” era preso a uma mentalidade primitiva e desorganizada que o tornava incapaz de tomar as rédeas de seu destino. Sem geografia definida, foi da mata para as metrópoles, e sonhava ganhar o estrangeiro: Europa, França, Bahia, céu e constelações. Ah, não podemos esquecer, voltamos ao Zé Carioca: a genial história de Macunaíma é contada ao autor por um papagaio!
Quem seria o personagem símbolo do brasileiro, hoje? Provavelmente uma mistura disso tudo, mas um ser meio perplexo, precisando se preparar “na marra” para as novidades da tecnologia, as regras, os impostos, o consumo, a violência, a corrupção, a participação social, a ginástica, o trânsito, a globalização, o avião, as expressões em inglês, enfim, a vida na moderna cidade grande.