29/11/2015

Poeta José Albano: nós, os nômades
Uns dizem que a seca, o calor, a vegetação, a natureza, enfim, nos impele; outros, que a origem é o nosso antepassado indígena. Fato é que temos fama de nômades. E parece que somos, mesmo, se não uma espécie de beduínos, mas ao menos uma gente que gosta de pegar a estrada. Uns filhos de Hermes, deus vagante e satírico, que simboliza o encontro entre céu e terra. Filhos daqueles vaqueiros que tangiam eternamente o gado pelas trilhas.

Ou somos uma gente meiga, que aceitou as imposições do enriquecimento de um País? Fomos soldados no Ciclo da Borracha na úmida solidão da Amazônia, fomos lavradores no Ciclo do Café numa performance de escravidão moderna, fomos candangos na construção de Brasília, a entrada do Brasil na modernidade, fomos trabalhar nas fábricas paulistas... parece que numa espécie de paixão pela incerteza. Mesmo isolado por serras, na parte de trás, e por um mar sem enseadas, sem portos, na parte da frente, o Ceará é uma terra de êxodos.

Eu mesma sinto em meu coração esse ímpeto de mudar de casa, ir além, tenho o fascínio dos horizontes. Sou bisneta de um andarilho, Antônio Nóbrega, que era casado, tinha filhos, mas aos poucos foi se tornando um caminhante, e a cada vez suas viagens eram mais longas, até que um dia ele não retornou. Porém o caso mais fabuloso, e o mais célebre, de vagantes cearenses é o do poeta José Albano. Ele dizia ter dois moinhos na alma: um de água, outro de vento, ambos sempre em movimento.

Era nascido nas classes altas, neto do barão de Aratanha, um dos homens mais ricos do Ceará, exportador de algodão. Sobrinho de bispo e parente de homens grandes da política. Ainda menino, José Albano começou sua vida nômade: aos onze anos foi mandado para uma escola jesuítica na Inglaterra; dois anos depois, para outra escola da Companhia de Jesus, na Áustria. E completaria seus estudos na cidade francesa de Dreux. De volta a Fortaleza, rebelou-se contra os pais e viajou para o Rio, onde estudou Direito, mas abandonou o curso para se dedicar à Musa. Trazido, à força, de volta a sua cidade, passou a ensinar latim no Liceu. A essa altura já possuía uma erudição vastíssima.

Conhecia as literaturas inglesa, alemã, grega, latina, e cultivava com esmero essas línguas. Em sua majestade inata, sua beleza desdenhosa, lembrando um rei assírio, era um cultor da língua perfeita. Apaixonado por Camões, escreveu versos primorosos, como este terceto:

Já reconheço agora o vão desejo:
O que procuro mais, menos alcanço;
O que mais imagino, menos vejo.

Talvez compreendendo seu espírito, a família lhe conseguiu um cargo no Ministério das Relações Exteriores, e foi quando ele se casou (como o meu tio-avô) e teve cinco filhos. Mas largou tudo, foi perambular pelo mundo. Com suas barbas nazarenas, um paletó amarfanhado, de veludo marrom, luvas tão gastas que mostravam as pontas dos dedos, uma bengala de falso junco, e um chapéu machucado e com mais de um furo, cobrindo a basta cabeleira de cachos sebosos, começou percorrendo a Europa: saiu de Paris, atravessou a Bélgica, a Holanda, a Alemanha, a Suíça, a Itália, a Áustria, a Hungria, a Romênia, a Bulgária, chegando à Grécia, dali passando para a Ásia, a África. Foi conhecer a Palestina e os mistérios do Egito. Cruzou também Portugal e Espanha.

Alguns de seus destinos tinham uma razão. Amante dos poetas antigos, viajou à Grécia e a Troia para ali reler a Ilíada; a Weimar, para evocar Goethe; e pela velha Castela, a fim de experimentar o percurso de dom Quixote. Caminhou de Viena a Paris, refazendo os passos do peregrino iluminista, Jean-Jacques Rousseau, descritos nos belos Devaneios de um caminhante solitário, e que foi a maior inspiração do flâneur cearense. Será que meu bisavô também andou lendo os devaneios de Rousseau?

Será que meu bisavô tinha a mesma figura inquietante, esquisita, de Albano? O que significam essas longas e misteriosas peregrinações cearenses. São uma fuga? Uma busca de algo? José Albano talvez tenha resposta a essa inquietação no “Mote”:

E posto que me atormente
Ando enfim continuamente
De esperança em esperança.