Os saraus da doutora

"A própria dona da casa apresenta um número gracioso acompanhada pelo filho adotivo, Vitor"

São fabulosos os saraus da doutora Maria Helena, nunca vi nada parecido. Saraus lítero-musicais, com a apresentação de cantores líricos, indígenas, populares; leitura de poemas, trechos de prosa, às vezes lidos pelo próprio autor; ou breves falas de pessoas ilustradas em algum assunto. Já estiveram ali cantores de estirpe, que se apresentam em salas como a do La Scala de Milão, homens e mulheres que cantam com voz de musas, interpretando as mais belas árias ou lieds. A própria dona da casa apresenta um número gracioso, em dueto com o filho adotivo, Vitor, cantando La ci darem la mano, da ópera Don Giovanni, de Mozart, ela cantando a Zerlina, Mi fa pietá, Masetto! Os quadros nas paredes são de artistas cearenses, os quais ela promove, e exalta.

Tudo acontece numa sala ampla, caprichosamente arrumada e enfeitada com arranjos de flores, cercada de jardins. Sobre a mesa de jantar são oferecidos pratos deliciosos, preparados pelas meninas da casa, Márcia e Edilúcia, sob a orientação do chef, que é o próprio pianista e professor de canto lírico. As pessoas presentes são de diversas atividades: médicos, poetas, escritores, artistas, um professor de grego, uma professora de sapateado, uma doutora em cavaleiros, heróis e pícaros; e músicos, engenheiros, paisagistas, jornalistas, economistas, senadores, sociólogas hinduístas, donas de casa, estudantes... Depois do jantar, compadre Deusimar dedilha, comovido, sob as mangueiras, um vasto repertório de serenatas; às vezes está entre nós a Lúcia, que sabe as letras de todas as músicas, entoadas em voz afinada. Também aparece por ali o músico Sebastião, com sua viola e voz macia. A dona da casa por vezes apresenta algum quadro, como o do ébrio, de Celestino, ou a tartaruga de Tânia, caracterizada como tal. Os descendentes de dona Pinheira, família de Porteira e Barbalha, têm uma tradição de contar histórias, e ali se ouvem as mais cativantes.

Minha mãe conta que saraus eram costume na bucólica Fortaleza dos anos 1950. Diz Marciano Lopes, em seu livro de memórias, Royal Briar, que na casa das irmãs Freire, à rua 24 de Maio, eles ocorriam com “cantos líricos e piano a quatro mãos”. Em 1886 a avó de Maria Helena participava de saraus em Recife, tocando piano a quatro mãos com a prima Maroquinha; em saraus no teatro, poetas peroravam os abolicionistas presentes, Patrocínio e Nabuco, e três escravas brancas (claras) declamavam: “No Brasil não há mais escravos/ Nunca mais a escravidão/ Sob a senda do progresso/ Cantemos ao réu padrão”. Saraus eram costume na sociedade brasileira do século 19, ali as pessoas se reuniam para mostrar talentos e conversar variedades. Em 1865 Machado de Assis fundou a sociedade Arcádia Fluminense, onde lia suas poesias e estreitava a amizade com escritores e poetas.

O mais famoso dos saraus literários aconteceu na sala de uma casa à rua do Conde, Rio de Janeiro, no começo do século 19. A senhora da casa, sua irmã e amigas se reuniram à noite em torno de uma mesa de jacarandá com um candeeiro, como costumavam fazer; em certo momento deixaram os trabalhos de agulhas para ouvir a leitura de algum romance-folhetim, que as encantava, como Amanda e Oscar, Celestina, ou Saint-Clair das ilhas; e a mãe chamou o filho, ledor predileto.

“Muitas vezes, confesso, essa honra me arrancava bem a contragosto de um sono começado ou de um folguedo querido; já naquela idade a reputação é um fardo, e bem pesado.”

Deixou seus folguedos infantis, abriu a página do livro para ler até a hora do chá. Nas partes interessantes tinha de repetir a leitura, e fazia pausas quando os ouvintes queriam expressar opiniões, recriminando um vilão, ou lamentando uma triste heroína. Em uma passagem comovente as senhoras romperam em prantos, de cabeça baixa, secando as lágrimas com lencinhos; o próprio menino chorava, mas tentando consolar as damas. Nesse momento chegou o reverendo Carlos, parente daquela família, e aflito perguntou se estava acontecendo alguma desgraça. Um tanto enrubescidas, as mulheres se calaram, e o menino tomou a si o encargo de responder:

“Foi o pai de Amanda que morreu”, disse, mostrando ingenuamente a página do livro. E o padre soltou sua gargalhada homérica.

O menino era José de Alencar, que conta sobre esse sarau no livrinho Como e por que sou romancista. Ele se pergunta se não teria sido a leitura assídua de novelas e romances que primeiro imprimiu em seu espírito a preferência por esse gênero literário. E relembra o gênio de Mozart, acalentado desde o berço com a melhor música.



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