Peleja com a língua de fora

Palavras misteriosas, com um poderoso dom de sugestão, de transporte a um mundo que nos dizia respeito, como meninas nordestinas desenraizadas


Meninas, nos anos 1960 minha irmã e eu lemos um longo poema popular, de uma peleja entre Laurindo Gato e Marcolino Cobra-Verde. Minha irmã a musicou e cantávamos, ainda lembro trechos, como este: “Laurindo, você agora/ responda ao que eu perguntar/ vou fazer uma toada/ para você desmanchar: / quem rapa a ripa sorrindo/ ô, rindo a ripa há de ripar”. Palavras misteriosas, com um poderoso dom de sugestão, de transporte a um mundo que nos dizia respeito, como meninas nordestinas desenraizadas. E assim tomamos pé com a poesia e música do sertanejo nordestino, que depois lemos em Euclides da Cunha: antes de tudo, um forte.

As pelejas dão indício dessa força, que não é apenas física nem só de resistência, mas uma valentia que não esmorece nem diante da seca, da bala, da fome, da dor, do cão. Fascinantes torneios de esperteza verbal, com desafios improvisados e respondidos no calor do flagrante, essas pelejas vêm de uma tradição medieval, quando vates iam se encontrar em duelos nos quais a arma era a palavra. Deu certo, aqui, no Nordeste. Nas pelejas nordestinas, se um cantador fica sabendo de outro cantador com repente seguro ou martelo tirano, lança um desafio; o adversário aceita, e se encontram em um lugar marcado; corre gente para assistir, vão vaqueiros, advogados, feirantes, mascates, padres, coronéis, moças donzelas... Juntam dinheiro num prato, para o vencedor; tomam partido, até apostam. Alguém prepara comida, bebida, vira acontecimento. Os dois poetas tomam da viola e duelam, sem freios, sem medo de ofensas ou insultos, tudo pela arte da sanha e da destreza. Os versos são intuídos, não há tempo para pensar, enquanto um ouve o contendor, já vai preparando a resposta, é preciso retorquir ao mesmo tempo em que se arma um ardil contra o oponente, tudo no ritmo e na rima e na métrica. A bravura é quem pensa. Vence quem dobra a língua do outro, quem faz o outro gaguejar, ou perder a rima, confundir a métrica, sair do tema sem astúcia. A habilidade desses pelejadores é espantosa, tudo é feito no improviso, mas dentro de regras minuciosas que determinam tanto as formas quanto aquilo que se expõe: em sextilhas, martelos, décimas, martelos agalopados, gemedeiras... Às vezes os cantadores trazem obra feita, temas já usados. É preciso aguçar a força criadora, extravasar as verdades contidas. Devem se apresentar, contar suas proezas, com que cantadores já se bateram, que vitórias obtiveram, falar de sua terra, suas origens; depois devem saudar os donos do lugar, mencionar as pessoas presentes, louvando-as ou despejando ironias, a fim de conquistar o público. Misturam formas de poesia, para confundir o adversário, e recursos de linguagem, para perturbar, como os trava-línguas. Alguns versos eles trazem prontos. Vangloriam-se, satirizam e criticam o oponente, mas mesmo nos desafios mais acirrados procuram manter-se sob um código de respeito, em limites tênues, de insultar sem ofender. Seduzem pela agressividade.

“Eu dou, tu apanha/ eu vou e tu fica/ levando tabica/ por causa da manha!/ foi tua campanha/ caída no porre/ eu vivo, tu morre” (peleja de Zé Félix contra Benjamim Mangabeira); “Desde que casei contigo/ que a tristeza deu um nó/ se for pra andar contigo/ eu prefiro andar só/ porque o povo pergunta/ se você é minha avó// Fizeste um catimbó/ que domou meu coração/ eu não ouvia conselho/ era uma tentação/ dias depois foi que vi/ que casei com um anão” (peleja entre os Cristóvão, casados).

As pelejas são contadas por poetas, em livros de cordel, que as reconstituem tentando o máximo de fidelidade. Às vezes o próprio pelejador narra seu desafio, nem sempre fiel à realidade; até mesmo podem ser imaginadas. Algumas pelejas ficaram na história, como a que Leandro Gomes de Barros perdeu para uma velha de Sergipe, a mulher era mesmo afiada, nada deixava sem resposta, tinha vocabulário, e acossava o cantador que jurou nunca mais voltar mais onde a tal diaba morava; a peleja de João de Deus com o célebre Diabo Negro; entre Romano Caluete e Inácio da Catingueira; agressivas, como a de Canhotinho contra Severino Pinto (Eu morro e não tenho medo/ de um pinto pelado assim!// Sou pelado, sem canhão/ por causa de um beliscão/ que tua mãe deu em mim!); ou a famosa peleja entre nosso cearense Cego Aderaldo e Zé Pretinho do Tucuns. Em terra alheia, Cego Aderaldo começa em desvantagem, o povo acredita em Zé Pretinho, incentiva-o, aposta nele. Dão-lhe o melhor lugar, a melhor comida, e ao “estrangeiro” Aderaldo, um caixote para sentar, um cafezinho com bolacha, falam que a sua rabeca é feia e o saco da viola, sujo. A viola de Zé Pretinho sai do saco de chita, toda bonita, coberta de fitas. Mas o esperto Aderaldo, com agressividade, consegue abater o ânimo do adversário e vence a peleja, fazendo com que o acuado Zé Pretinho fique sem palavras e faça repetições disparatadas. “O negro hoje chora/ com febre e com íngua/ eu deixo-lhe a língua/ com um palmo de fora!”



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