Moacyr Scliar em Fortaleza

“Iracema, sentindo que se lhe rompia o seio, buscou a margem do rio, onde crescia o coqueiro. Estreitou-se com a haste da palmeira. A dor lacerou suas entranhas; porém logo o choro infantil inundou sua alma de júbilo. A jovem mãe, orgulhosa de tanta ventura, tomou o tenro filho nos braços e com ele arrojou-se às águas límpidas do rio. Depois suspendeu-o à teta mimosa; seus olhos o envolviam de tristeza e amor. – Tu és Moacir, o nascido de meu sofrimento. A ará, pousada no olho do coqueiro, repetiu, Moacir; e desde então a ave amiga unia em seu canto, ao nome da mãe, o nome do filho.”

Lá no Rio Grande do Sul, em 1937, uma jovem professora que se chamava Sara leu essas palavras delicadas de um escritor longínquo e antigo, causador de sonhos bucólicos que se passam nas mais belas areias e matas cearenses. Sara estava grávida, e a cena tocou-a tanto que, quando teve o filho, deu-lhe o nome de Moacyr. Não escolheu o nome do branco, Martim, mas o nome indígena da criança nascida de duas culturas, simbolizando o surgimento do povo brasileiro. Correu pela vizinhança que o menino se chamaria Moacyr.


A família vivia num bairro de imigrantes, o Bom Fim, onde residiam muitos judeus, mas também italianos e portugueses. Vindas da Bessarábia, na Rússia, as famílias de Sara e José Scliar chegaram ao Brasil em 1904, fugidas para não serem mortas nos pogroms antissemitas, ataques violentos aos judeus, massacrando homens, mulheres, crianças, destruindo suas casas, lojas, oficinas e igrejas. Nesse bairro em Porto Alegre viviam os judeus nas suas casas pequeninas, geladas no inverno, sem água quente nem fogão, trabalhando como marceneiros, alfaiates, mercadores, e ajudando-se mutuamente. Ali Moacyr cresceu, sem perceber que passava por privações. “Eu não sabia que era pobre”. Os judeus tentavam reconfortar-se para melhorar a sensação de desamparo, as ruas eram sempre cheias de gente, crianças jogavam e brincavam, soltas. Faltava comida em casa, mas não faltavam livros.

Os judeus eram uma cultura de vivências sofridas e ricas, com experiências de êxodos, de novos lugares, de novas relações, e essa cultura se expressava, sobretudo, com a palavra escrita; “desde os tempos bíblicos o judaísmo cultiva verdadeira veneração pela palavra escrita”. Mesmo os mais pobres imigrantes traziam em sua bagagem pelo menos um livro. Todas as noites as famílias reuniam-se para tomar chá, conversando e contando histórias, quase sempre sobre a chegada ao Brasil, recordando sua terra, comentando as diferenças. José, que trabalhou em fábrica, foi pequeno lojista e fabricante de acolchoados, era um bom contador de histórias. O pequeno Moacyr ouvia, e aprendia a ser fabulador.

Alfabetizado pela mãe, aos sete anos de idade escrevia em papel de embrulho de pão histórias do dia a dia, que os pais liam, admirados e orgulhosos. As histórias passavam de casa em casa no bairro, dando ao menino a fama de “o escritorzinho do Bom Fim”. “E a verdade é que eu nunca pretendi ser mais do que isso”, disse Moacyr Scliar, no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras.


Segundo nota no romance, Moacyr significa “filho do sofrimento”. “Os nomes são recados dos pais para os filhos e são como ordens a serem cumpridas para o resto da vida”, disse o escritor. E além de escritor, que trata das dores do espírito humano, Scliar foi ser médico, para presenciar, acompanhar e aliviar a dor humana, escolhendo a medicina social. Eu o conheci. Era um homem meigo, paciente, dava conselhos sábios e inesquecíveis, e estava sempre disposto a ouvir e a dedicar-se ao outro. Muitas vezes o vi nesses seminários de escritores, mesas de debates, nas feiras literárias, e sempre li seus maravilhosos livros de centauro de duas culturas, dotados de potente imaginação, em teor humanista e universal. Fomos colegas de coluna num jornal de Brasília, e nos escrevemos mutuamente resenhas de nossos livros, publicados na mesma época. Assim, ele me deixou de presente um belíssimo texto sobre Amrik. Fez debaixo de estrelas de um planetário uma palestra quase mágica, e quase médica, quando publiquei um caderno de sonhos.


Ele jamais esqueceu a origem de seu nome, e homenageou José de Alencar com um livro para jovens, em que adolescentes estudam O Guarani, comparando a obra com a atualidade. Moacyr foi-se embora, da maneira mais inesperada. Disse que queria ser lembrado como “alguém que amou as pessoas, amou seu país e sua cultura, amou a literatura, amou a medicina.” E foi por todos amado.




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