O Poeta de Meia-Tigela

Desde que cheguei do Ceará ouço falarem n’O Poeta de Meia-Tigela. Sempre que seu nome vem à tona, é anunciando um debate sobre a conveniência de um nome assim, as opiniões são divididas, uns a favor, uns totalmente contra, alegam todo tipo de argumento: Falta de estima por si mesmo! Inesquecível! Bem-humorado! Brincadeira com coisa séria! Séria? Poesia é brincar com palavras! Orgulho escondido! Estapafúrdio! Genial! Adorável! Patético! Exibido! Extravagante! Temerário! Quimérico! Ridículo! Sofístico! Fabuloso!

Se me perguntam, digo: Gosto.

Acabei conhecendo o poeta no quintal de Pedro Salgueiro, num de seus animados almoços familiares, com direito ao capote que sua mãe, do Pedro, prepara com aquela arte de antigamente. O Poeta de Meia-Tigela chegou com sua bonita mulher. Ele parece mesmo um poeta, também dos velhos tempos, é jovem, muito magro, pálido, de cabelos compridos, ar de filósofo. Tem uma suavidade e delicadeza que cativam. Um ar desamparado que desperta ternura. Fala pouco e baixinho. Tudo natural.

Mas não se enganem com sua aparência e nome, ele é forte, e sua poesia mostra o quanto. Recebi seu livro, Concerto, N° 1nico em mim maior para palavra e orquestra. Poema. Na capa, o estudo para “O violinista azul” de Chagall, em que o violinista azul é branco, de camisa verde e toca um violino amarelo. Mas azuis são algumas escamas de suas pernas-sereia, azuis a ave, o telhado, a névoa da bicicleta, o anjo, a sombra da paisagem. Assim como o poeta. Pelas páginas do livro ocorrem diversos desenhos feitos pelo autor, muito bem estruturados em poucos traços, kafkianos. Um deles, no ex-líbris do vate, é ele mesmo: a partir do número 1, um homem recurvado pelo peso da quantidade daquilo que é inteiro e completo. Uma figura pensativa, atenta ao dentro e ao fora, com um desconfiado pé-atrás. “Mas tudo volta ao Um, pois / O Tempo me corrobora”. Tantas as interpretações... tanta loucura do pensamento humano... tudo cabendo dentro de uma palavra que ele criou: Amor, te.

“Deixai para trás os parvos.

Os qu’inda têm ilusão.

De viverem hors-caixão.

De acumularem centavos.

Amor o que tenho a dar-vos.

Pegai do punhal à mão.

E avivai nossa União.

Amar-vos, que é? (M) atar-vos.” Como ele é mesmo filósofo, até dá aulas de filosofia na universidade, os elementos de sua poesia se misturam – algo de cordel, algo de Ceará, algo de sertão, algo de coronel, algo de fome, rato, rabeca, arauto – a toda a corja da mitologia clássica e a nativa. Também suas lembranças, “confesso que não vivi”; suas referências literárias, Dostoiévski, Lúcio Cardoso, Gregório de Matos, Alcides Pinto...; suas inquietações, dúvidas, seu modo de ser, “o sórumbático” ao mesmo tempo só e sorumbático e rumba e ático (da Grécia Central), numa desconstrução e reconstrução de palavras que ele tanto aprecia. Organiza tudo num quarteto, construindo uma estrutura à la Joyce, cada parte significando um elemento e função psíquica, trabalhando nas unidades e totalidades do mundo: terra/pensamento, fogo/sensação, ar/sentimento e água/intuição. Parece complicado, mas não é.

Os poemas são de uma riqueza infinita, enigmas para ocupar os professores por séculos, como dizia Joyce de seu Ulisses. E bons de leitura, inteligentes, desafiantes. “O Cristo nasceu / Pobre de mavé / Nascesse agorinha / Viria com fé?”; ou “M, o monstrengo que sou”, “As palavras gentis / Grunhidas, assopradas / São ciladas, ardis, / Pragas edulcoradas” ... “Meu corpo, marionete / De engonços e de esgares./ A mente, o Gabinete / do Doutor Caligari” ; ou “ingeri Morgana / como fosse cana. // caí melancólico / num torpor alcólico (sic). // morri dormente / algum tempo: ausente. // depós que acordei / vomitei, sarei. // agora me ocorre / tomar outro porre”. E o eleito pela orelha e pelo marcador de página: “Sim, penso, existo. / Mas o que sou? / Sou o que hesito / Em ser? Ou... Ou / Sou só o que / Sei ser-me sem / Erro, sem se? / Sou o que pen- / So? Mas que pensa / O quem o qual / Sou? É? Hem? Sa- / Berá? Que tal? / Existo, sim. / Que sim sou? Ex- / Isto? Que mim / Sou? Sou? Talvez”. E, afinal, o último poema do livro: “O menino morto”: “já nasci assim. / não morri. Nãosim.”

Jogos, brincadeiras, nomes, com a amplidão da cultura contemporânea que nos arrasa; o anjo torto, o serafim sorumbático assim me dedicou o livro: “À Querida Ana Miranda / Carinhosamente oferto... / ... Este Honrado Desconcerto / De Poesia Nefanda...” Rimar Miranda com nefanda, sinceramente: só Augusto dos Anjos.



Página incial       -        Página anterior